Racismo e cerveja: o mercado que o mercado precisa construir

Dois meses depois que o racismo revelou sua face no meio cervejeiro, com o caso da Cerveja Cafuza, os ataques à Cervejaria Implicantes e à sommelier Sara Araujo, muito se falou e se lamentou, mas ainda há muito a ser feito na prática para mudar esse cenário.

Parece repetitivo falar de racismo

Mas não é. E se você acha isso, te faço um convite: exerça o seu direito de escolher outro site e pare de ler agora. O que vem a seguir, interessa apenas a quem realmente sente que alguma coisa está errada e que, independentemente da sua cor, pode e deve ajudar a mudar.

Desde que escrevi o primeiro texto sobre o assunto, meu objetivo foi usar usar este espaço e minhas redes para compartilhar uma angústia minha e de todos os profissionais e pessoas pretas desrespeitadas com tudo que está acontecendo. Mas além disso, também queria dar luz e provocar uma discussão sobre um tema que ainda segue velado dentro da comunidade cervejeira.

O objetivo foi cumprido, mas em partes. Dentro da comunidade, consegui engajar milhares de pessoas que leram e compartilharam esses artigos. Naturalmente, outros setores foram impactados e sempre com o mesmo respeito e indignação, esses textos serviram para entender um pouco do que vem acontecendo. Outros artigos se somaram e alcançaram pessoas aqui e no mundo todo, compartilhando não apenas um texto, mas reflexões importantes sobre algo que é real e que pede providências e ações urgentes.

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Com esse alcance, vieram também muitas mensagens de solidariedade, pessoas chocadas e com raiva dos acontecimentos racistas e de ódio contra pessoas pretas no meio cervejeiro. É claro que isso nos motiva. Historicamente, sempre foram apenas pessoas pretas lutando por si contra o sistema. Hoje, é possível notar que a luta ganhou novos aliados. Mas só o choque não mexe a régua da falta de representatividade, do racismo com quem está em um meio onde pessoas pretas ainda precisam dizer a que vieram e, ainda assim, são desrespeitadas e sofrem ataques de ódio, como Sara.

Um branco chocado com o racismo não muda nada

Tenho recebido muitas mensagens perguntando como lutar contra o racismo. Confesso que não sou especialista, mas tenho estudado e conversado muito com outras pessoas pretas pra que possa entender meu papel e como ajudar cada vez mais. Samuel Emilio, Sara Araujo entre outros são algumas das referências que não só me inspiram, mas também contribuem com suas reflexões, textos e conhecimento. É o que recomendo sempre quando alguém me pede ajuda: tome uma atitude verdadeira, prática e positiva. E como se faz isso? De várias formas, e estudar é só uma delas.

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Pense, o racismo não nasce em nós, mas ele é ensinado desde cedo e não é um botão que você desliga e resolve o problema. É preciso desconstruí-lo a cada dia, em cada atitude sua e depois, em atitudes à sua volta. Samuel Emilio, em seu Diário Antirracista, faz isso de forma muito clara e prática, trazendo conceitos e provocando reflexões para praticar diariamente. Mas isso eu já repeti muito, se você chegou até aqui e ainda não se dedicou a estudar e entender, minha pergunta é: você realmente quer mudar algo? Se quer, invista esse tempo e aprenda.

Outra coisa que é preciso fazer é olhar em volta. Veja, de novo, são quase dois meses onde muito se falou sobre racismo no meio cervejeiro, e quando os ataques de ódio à Cervejaria Implicantes pareciam ser a coisa mais absurda que podíamos ver, uma sommelier negra é atacada em um grupo de sommeliers brancos. Mais choque, divulgação de prints, comoção nas redes sociais. Mas e na prática?

Qual o valor de pessoas pretas no mercado cervejeiro?

Uma nota de repúdio não muda muita coisa, o que muda é ação. Mas uma nota mostra algum respeito pelas vítimas e pela causa envolvida. Ela revela alguma preocupação com o cenário, pode trazer eventuais planos de ação imediata ou a longo prazo, afinal, como já disse, não se vira a chave e vira antirracista apertando um botão. E mais, uma nota de  posicionamento pode reconhecer que há um problema, ser solidária com o lado prejudicado, e colocar o mercado inteiro para se mexer e criar ações positivas que tragam mudança efetiva em prol da comunidade.

Abaixo, algumas iniciativas e manifestações relacionadas ao caso que envolveu a sommelier Sara Araujo e a Cervejaria Implicantes e também ao combate ao racismo no meio cervejeiro.

Doemens

A Doemens, criadora do primeiro curso de formação profissional de sommelier de cervejas do mundo, se manifestou através de nota assinada por seu diretor global, Michael Zepf, e a diretora de educação para América Latina e Península Ibérica, Cilene Saorin.

 

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Escola Superior de Cerveja e Malte

Publicou uma nota de repúdio e afastou os profissionais citados nas mensagens com ataques à Sara Araujo, “que atuam de forma ocasional na ESCM”, e abriu processo junto ao Conselho Superior da instituição. Nota completa aqui

Science of Beer

Publicou nota de repúdio, informou que não possui em seu quadro nenhum dos envolvidos nos ataques à sommelier Sara Araujo, que também é professora da instituição com a aula ‘Racismo e a necessidade de ser antirracista no mercado cervejeiro’ e também informou que possui “um programa de ações afirmativas com bolsas de estudo parciais e integrais para negros, indígenas, pessoas com deficiência e outros grupos em situação de vulnerabilidade econômica.” Nota completa aqui

 

Abracerva

Divulgou nota onde declara que condena todos os tipos de discriminação e afirma que mesmo antes dos acontecimentos, já havia criado o Núcleo de Diversidade para combater essas atitudes, liderado pela sommelier Nadhine França. Nota original aqui.

Ambev

Através do perfil da Laura Aguiar, Head de Conhecimento e Cultura Cervejeira na Ambev, tive conhecimento da nota de repúdio abaixo, que se solidariza com as vítimas e fala de programas e politicas internas em prol de inclusão e diversidade. Post original no Linkedin

nota ambev sobre racismo

Heineken

Durante o evento online de Heineken sobre Raça e Carreira, promovido pelo Grupo Origens, o grupo interno de afinidade racial da Heineken, a companhia apresentou oportunidades que o grupo vai oferecer para formação de novos líderes com mais representatividade, e contou com o CEO Mauricio Giamellaro, que se comprometeu a estudar e a combater o racismo do ponto de vista pessoal e dentro da companhia.

Acerva/SC

Publicou uma nota de repúdio no Instagram em solidariedade aos profissionais ofendidos.

 

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Palavras como as que lemos nesse fim de semana (de um grupo fechado de WhatsApp) nos envergonham, nos entristecem. Esse não é o mundo cervejeiro do qual queremos fazer parte. A AcervA/SC repudia tais atitudes preconceituosas, e se solidariza com os que foram ofendidos. Queremos evidenciar que a cerveja é (ou deveria ser) democrática. Se não o é, que o recente acontecido deixe a lição para que se repense profundamente sobre isso, que na cerveja há espaço para todas as pessoas, todas as raças, credos, gêneros. Nossa missão aqui é de compartilhar conhecimento cervejeiro, e não o ódio. Que este momento sirva de reflexão, porque atitudes como estas já não cabem mais no mundo que vivemos. Um brinde ao respeito. Sugestão de leitura: https://www.farofamagazine.com.br/artigo/o-gabinete-do-odio-cervejeiro

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Acerva Gaúcha

Publicou uma nota de repúdio no Facebook em solidariedade aos profissionais ofendidos.

Nota de Repúdio

A Associação dos Cervejeiros Artesanais do Rio Grande do Sul (ACervA Gaúcha) vem a público repudiar…

Publicado por Acerva Gaúcha em Quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Brewers Association

Nos Estados Unidos, após ser criticada por não se posicionar enfaticamente em casos de racismo no segmento, a Brewers Association aprovou um código de conduta que incentiva cervejeiros a não se calarem ao testemunharem qualquer tipo de discriminação. Leia mais aqui

É urgente um posicionamento claro de quem vive desse mercado

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É preciso mais envolvimento e ações práticas. Cervejarias, bares, escolas, entidades cervejeiras e seus profissionais precisam entrar nesse jogo, incluir profissionais negros na discussão e trabalhar formas de aumentar representatividade e inclusão. Além disso, é urgente e imprescindível que o combate ao racismo e a racistas seja feito de forma clara e efetiva, seja através da criação de códigos de conduta para docentes, funcionários e outros profissionais, seja pela inclusão de disciplinas que tragam o tema racismo para a sala de aula.

O caso da Cerveja Cafuza é apenas um dos muitos onde uma cervejaria usa a cultura negra sem entender nada sobre ela, cria algo ofensivo e depois precisa se desculpar. Por que o máximo que uma cervejaria consegue chamar de homenagem ao povo preto é associá-lo a uma cerveja escura?

É preciso envolver pessoas pretas para criar algo legítimo e positivo. Se você anda pensando em trabalhar no meio cervejeiro ou estudar pra saber mais sobre cerveja, ajude a promover uma mudança. Questione como instituições, associações, bares e profissionais que você respeita estão lidando com os casos recentes de racismo e ataques de ódio. Questione seus posicionamentos, e principalmente, a falta deles.

Isso não acaba aqui

Photo by Clay Banks on Unsplash

Essa discussão veio pra ficar. Há menos pessoas pretas com protagonismo no mercado cervejeiro do que a gente gostaria, mas elas estão lá. Há muitas outras chegando com vontade de ajudar a transformar esse mercado. Estudos estão aí pra provar que diversidade faz bem para a vida, pras pessoas e para os negócios. Quem enxergar os benefícios e entrar nessa jornada de transformação agora, pode fazer a diferença. Mas principalmente, fará história.

Escolas, associações, cervejarias, bares e profissionais são parte fundamental da transformação que o mercado precisa para ser mais ético, diverso e inclusivo do que é hoje. São eles que organizam o mercado, formam e empregam profissionais. São eles que precisam combater diariamente atitudes racistas e dar exemplo.

Inovação também é rever condutas nocivas. É ouvir a comunidade na qual você está inserido e se aliar a ela para, juntos, fazer desse mercado um espaço de respeito, diversidade e equidade para todas, todos e todes.

About

Publicitário, pós-graduado em Gestão de Marketing e com mais de 20 anos de experiência como criativo, escreve em blogs desde 2004, adora Instagram, é cervejeiro, sneakerhead e autor do livro
 "Hora do gole, aquela pausa entre umas e outras".

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1 comentário

  • […] Quando foi mesmo que as mulheres deixaram o universo da cerveja e se tornaram apenas parte da publicidade? Quando foi mesmo que os caldeirões deixaram de ferver mosto e começaram a fazer feitiçarias e fomos queimadas por isso? Quando foi mesmo que colhemos os grãos para fazer pão e nos esquecemos do mingau que azedou? Quando foi mesmo que nos tornamos apenas prints? Quando foi mesmo que o mundo deixou de fermentar aquilo que tinha, para servir apenas a um tipo de copo?  Quando foi mesmo que paramos de nos importar com a diversidade? Ou nunca nos importamos? O discurso não pode arrefecer, as políticas de diversidade e equidade são urgentes. A cerveja não é boa ou ruim, é o que fazemos com a história dela e a partir do que ela simboliza para nós. Como disse o Eduardo Sena em seu artigo, é “preciso construir”. […]

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